David Coimbra: "Chora, macaco imundo". Colunista fala sobre racismo no futebol
Li hoje no jornal Zero Hora a coluna de David Coimbra e achei o máximo!Compartilho para ler e refletir!
Machiavel dizia:
“Todos veem o que tu pareces, poucos sentem o que tu és”.
Eu digo:
“Às vezes é bom começar com uma citação. Dá o peso da Verdade ao texto”.
Mas não estou sendo cínico. Acredito na máxima de Machiavel, que, de
resto, era homem inteligentíssimo. Você sente o que você é. Você tem, em
algum lugar do fundo do peito, uma ideia do que é a sua vida. Você tem a
sua própria história incrustada na alma, e você precisa ser coerente
com essa história, ou implodirá psicologicamente.
Por exemplo: aquele sujeito musculoso que espanca gays na rua. Ele
passa a imagem de que é um machão, e é como todos o veem. Ele também
quer acreditar que é assim, foi essa a história que construiu para si
mesmo. Mas, nas profundezas do seu ser, ele sente um incompreensível
desejo homossexual. E é por isso que ele bate nos gays: para expulsar um
desejo que não deve sentir; um desejo que ele, mesmo sentindo, não pode
reconhecer que sente. Porque, se reconhecer, estará sabotando a
história que escreveu em sua alma e que apresenta com orgulho para os
outros. O espancador de gays não chega a ser um gay frustrado, mas é uma
pessoa que está sempre na iminência de se tornar incoerente com a sua
própria história. Dramático.
Um país também tem uma imagem externa e uma história interna. Para o
exterior, o Brasil construiu uma imagem de bonomia, de alegria, de
tolerância e de felicidade. Durante muito tempo o brasileiro quis
acreditar nisso, mas a história do Brasil teima em desmentir essa
crença.
Vou citar um único fato que, como o desejo homossexual recôndito do
machão, implode a história o Brasil de dentro para fora: por aqui houve
300 anos de escravidão. Fomos o último país a abolir a escravatura. E no
Brasil não houve, como houve nos Estados Unidos, programas de
integração dos ex-escravos na sociedade. E no Brasil as chamadas ações
afirmativas são tardias, malfeitas e quase inócuas. E no Brasil nunca se
produziu um filme como esse ganhador do Oscar que está em cartaz, “12
anos de escravidão”, que é uma exposição honesta e crua da história dos
Estados Unidos para o mundo exterior. Este filme é como uma confissão. É
como se o espancador de gays um dia admitisse: sim, eu sinto um desejo
que não gostaria de sentir.
Os 300 anos de escravidão do Brasil são uma mácula horrenda que o
Brasil jamais teve coragem de expor. Uma culpa nunca expiada. E, mais do
que mácula e culpa, é um episódio definidor do caráter e da história do
brasileiro. Por isso, toda reação a manifestações racistas será
bem-vinda no Brasil. Ser chamado de gringo ou de alemão nunca foi
pejorativo. Chamar alguém de macaco é ofensa no mundo inteiro, pela
conotação histórica que a palavra ganhou. Pelo que o homem branco fez
com o homem negro.
Torcedores gremistas juram não estar sendo racistas quando cantam
para os colorados “chora, macaco imundo”. Está bem. Vou acreditar que
não sejam, sou um crédulo. Mas a palavra é racista. É uma injúria eterna
e universal, quando dita para um homem negro. É preciso evoluir até no
xingamento. A torcida do Grêmio bem pode encontrar uma forma mais
civilizada de agredir o tradicional adversário.